Dois senhores grisalhos perambulavam noite adentro, desfrutavam de mais uma vitória no campeonato de bocha, da terceira idade .. Enquanto gozavam do bigode um do outro, avistaram um banco coberto de ferrugem, as pernas, que já não exibiam um porte atlético, exigiam descanso e sentaram aliviados. Um deles, o galhofeiro disse:
- O que de mais ousado dois velhotes podem fazer, se não, encostar as bengalas em um banco sujo de uma pracinha abandonada pelo futebol arte dos meninos da rua?!
O outro, o sorumbático respondeu com a voz roca e abafada:
- .. Amar.
Risadas estrondosas tomou conta da atmosfera:
- Um velho tristonho falando de amar aos 74 anos! Qual velha iria aderir a mesma doutrina meu velho gaga?!
Com uma timidez encantadora, o sorumbático respondeu:
- Dona Eulália da padaria, oras! Ainda não percebestes? Esta caidinha pelo seu amigo aqui!
- Caro amigo, endoideceu de vez, será alguma doença contagiosa? (esquivou-se para esquerda).
- Tranquilize-se seu velho debochado. Amanhã cedo irá comigo comprar pão, depois, me dirá se estou equivocado .. ela esta encantada.
Conversaram mais uns minutos e resolveram ir para casa. Após a morte da filha e esposa num trágico acidente, o velho melancólico se isolou do mundo e desfrutava apenas da rabugice do velho amigo.
No dia seguinte, as 5:59 horas o despertador os acorda. Colocam suas roupas feitas em alfaiates, o sorumbático, feito um menino, esta prestes a sair correndo pelo portão à procura de sua amada. O galhofeiro o acompanha silenciosamente. Passos lentos e chegou até a padaria, Eulália diz:
- O mesmo de sempre?
- Sim. Quatro pães, duas rosquinhas e um leite de saquinho.
Enquanto aguardava seu pedido, percebeu uma goteira no canto direito e aproximou-se já pedindo uma chave de fenda e fazendo o serviço. Depois de alguns minutos, o conserto estava feito e Eulália alegre o convidou para um jantar simples, como uma forma de recompensa.
Na ida para casa, ele comentou com o peito estufado:
- Esta vendo .. seu velho amigo aqui ainda faz um sucesso danado! (risos).
- É nada .. ela foi apenas educada!
- Educada? não. Reparou o olhar dela me fitando a cada instante?
- Velho, você esta maluco! Tire essa idéia da cuca, são apenas bons amigos de longa data.
A tarde demorou passar. À cada instante, ele entrava no quarto para verificar seu terno azul marinho na beirada da cama, arrumava as meias e os sapatos, deixou até o perfume guardado há anos em cima do criado mudo. Olhou a foto de sua esposa e filha, já falecidas e pensou:
Ah saudade. Foste tão cruel comigo todos esses anos. Quem derá agora me desse um pouco de alegria. Sinto falta de uma mulher em casa, no lugar, comprei um cão, mas ele só late e come ração, não me faz carinho, por mais que me dê toda a atenção. Enfim, já não choro como antes por saudade de minha filha que cursava medicina e que jurava cuidar de mim até a morte. Preciso de alguém vida, encaminhe aos meus sonhos a dona da padaria com aqueles olhares que querem me dizer algo.
Seu velho amigo, aproximou-se e em tom de despedida, anunciou:
- É, meu caro, foi muito bom o tempo que passei contigo, mas é chegada a hora de seu velho amigo aqui partir para outros lares.
Aborrecido, o sorumbático, respondeu até agressivo:
- Ora velho safado .. pare com suas piadinhas de muito mal gosto, sabes bem que não gosto disso!
Uma luz fria e contagiante entrou pela janela do quarto, iluminando o ambiente, fazendo até dilatar a púpila ..
- O que é isso? (perguntou o velho amedrontado).
- Calma amigo, não é uma piada .. sou eu partindo, caso não tenha percebido, sou um amigo imaginário que você criou para as noites tristes. Lembra-se? Conversavamos durante horas, eu servi para ajudar-te a se recuperar da morte de sua filha e esposa, agora que estas curado e encaminhado para um novo amor, hei de ir embora.
O velho tristonho, lembrou-se de uma noite em que acordou suando e que algo assombroso acontecera. Após um pensamento de querer ter um amigo, este, que agora se despede, bateu-lhe a porta e foi logo estendendo o paletó no sofá .. será mesmo que sua mente seria capaz de imaginar algo tão absurdo?
O amigo sumiu diante da luz imensa.
Ele foi tomar banho .. fez a barba .. colocou a roupa e comprou uma rosa. Chegou a hora de ver Eulália. Caminhou pela calçada reparando se seu amigo iria surgir daquelas imensas árvores e dizer que tudo não passava de uma bobagem. Chegou até o portão da casa de Eulália, tocou a campanhia.
Ela estava linda e carismática, o vestido estampado de seda, fazia dela mais jovial com o constante brilho nos olhos e quem diria, passou até batom! Ele tirou o chapéu e lhe ofertou as rosas e o vinho que comprará para a ocasião.
Avistou a mesa farta e duas velas, tratava-se de um jantar romântico ou era uma visão?
Eulália, juntando uns dedos nos outros, começou sua revelação emocionada:
- Não sabes como esperei por este momento. Sei que sente infinita dor em ter perdido seu grande amor e sua filha que eu tanto adorava. Talvez depois de tanto tempo perdido, você entenda como me senti durante todos esses anos, vendo meu amor dividindo a alegria com outra. Estudamos na mesma escola, eu queria ter dançado o baile contigo, mas convidou outra. Somos vizinhos, você compra pão e leite todos os dias a mais de 40 anos e meus olhos sempre que te enxergam denunciam o quanto te amam. Escrevi várias cartas todo esse tempo, na esperança de enviá-las, mas eu não poderia destruir seu lar e sua alegria. Amei você em segredo. Nunca casei-me apesar dos vários convites. Não tenho filhos para cuidar de mim na velhice. Tenho apenas a padaria, que é nosso ponto de encontro todas as manhãs e hoje, esse jantar para revelar o quanto te amo e não precisa ficar se sentir encomodado.
O velho, esboçou um sorriso apaixonado, não entendia muito bem a situação, mas entendeu que Eulália o respeitou todos os dias de sua vida, mas que era chegada a hora de uma nova poesia.
- Eulália, minha rosa, vamos ao baile da terceira idade após nosso jantar? Lá, aos passos da melhor valsa, há de acontecer nosso primeiro beijo.
Sorriram e abraçaram-se como dois jovens descobrindo a puberdade.
À partir desse dia, nunca mais se soube da saudade. Eles conversavam todo fim de tarde na varanda, lembravam do tempo de escola e falavam sobre o amor da mente: Philía.
Descobriram que foram feitos um para o outro e vez ou outra ele lembrava de seu amigo imaginário, mas manteve isso em segredo pois era uma baita loucura!